quarta-feira, 8 de abril de 2015

De volta ao aconchego das palavras

[Voltei aqui porque as palavras sempre foram o meu refúgio. Porque, nos últimos tempos, o sabor amargo da diferença tem tentado anular o doce da vida. Porque vou iniciar uma longa jornada e quero que cada lição fique eternizada e só as palavras conseguem imortalizar as pessoas e as suas vidas]



Estamos a calçar as luvas, a fazer o aquecimento, a exercitar os músculos do coração e, sobretudo, da alma.
Achamos que sabemos o que nos espera. As dificuldades que se avizinham. Os dias difíceis e, sobretudo, dolorosos. Mas, provavelmente, não fazemos a mínima ideia de quão longa vai ser a nossa jornada. Nossa. De todos. Juntos, como sempre. Não fazia sentido de outra maneira senão assim, em uníssono nas gargalhadas, mas também aconchegados na dor.

Naquele dia em que a enfermeira entrou, acanhada, na sala de espera e chamou um familiar, eu sabia que as notícias não seriam boas novas. Se fossem boas, a médica não precisaria de falar primeiro com um familiar e só depois com o paciente. Eu sabia. Eu até já tinha pesquisado sintomas de cancro do estômago e do cólon e de sei lá mais o quê. Mas o que ele tinha poderia ser sintoma de tanta doença e, ao mesmo tempo, de nada. Por isso, apesar de implorar para que ele fosse ao médico, eu tinha esperança que aquilo não passasse de um mal estar passageiro ou de uma bactéria qualquer activa. Ainda assim, quando me sentei e foquei nos olhos da médica, atirei convicta: "Pode dizer. Já estamos à espera de más notícias!" (Que parvoíce! Que inocência! Que leviandade! Nunca se está preparado para ouvir a sentença que se seguiu!). E ela, com cautela, afirmou: "O seu pai tem uma úlcera muito grande no estômago. Tirámos amostras para análise e só vamos saber se é maligno ou benigno depois da biópsia. Ainda assim, pelo aspecto e tamanho daquilo, é para retirar o estômago todo. Não perca tempo. Corra para o IPO, o seu pai precisa de ser tratado com urgência".

Mas que grande abanão! Só pensava "não chores! não chores, por favor!" e a seguir pensava "como é que a mãe vai aguentar mais isto? Como? Porquê a nós? Já não temos que chegue?". Nestas alturas, aquela ideia retrógrada de que estamos a ser castigados ou a ser postos à prova por qualquer motivo vem-me sempre à cabeça. É uma estupidez, eu sei, mas não consigo evitá-la!

Ela tentou mostrar-me que aquilo não era o fim do mundo, que muita gente vive anos sem estômago, fazendo uma vida relativamente normal, que ele iria apenas precisar de mudar alguns hábitos, como deixar de fumar (40 cigarros por dia! 40!!! Ou mais!!!), evitar consumir bebidas alcoólicas (que eram diárias. Um copo de vinho verde às refeições, um Martini a meio da manhã e uma bela de uma cerveja a meio da tarde. Coisa pouca, portanto!), aprender a comer outros alimentos pouco habituais. E eu gritei. "Ele não vai mudar! Não vai! Não é homem para isso! Há anos que lhe peço para mudar e nada! Não vai!". Ela insistia: "Vai ver que vai. O susto vai fazê-lo mudar e aprender".

Ouvi a médica a contar-lhe. Percebi que ele não estava a ter a real noção da gravidade. Impulsiva, como sempre, atravessei a cortina e disse abruptamente: "Provavelmente (se calhar até me esqueci do provavelmente) tens cancro do estômago. Vais ter que retirar o estômago. Vamos para o IPO tratar da situação". Ele calou, por breves momentos. A médica explicou novamente, com mais cautela e precaução. No fim, ele disse, com o mesmo humor peculiar de sempre, "quando morrer sou um defunto, senhora doutora". Tantas vezes me apeteceu esganá-lo pela sua inconsequência. Bater-lhe como se faz a uma criança mal comportada pela sua irresponsabilidade e falta de cuidado para consigo mesmo. Tantas vezes me apeteceu arrastá-lo por um braço até ao médico. Mas, o respeito que se deve ter a um pai impediu-me de tudo isso. Quem me dera não o ter respeitado tanto!

Ao chegar a casa, lá foi ele ao café. "Vou registar o Euromilhões", disse! Quando lá cheguei, estava a beber uma cerveja. A beber uma cerveja depois de ter estado horas em jejum, ter feito endoscopia e colonoscopia com sedação, ter descoberto que tem uma doença grave. Lá estava ele, com a mesma irresponsabilidade. Que fazer? Bater-lhe? Ai que tanto me apetecia trocar de papéis e espancá-lo! Mesmo que ache que essa não é a melhor forma de educar, era só isso que me apetecia fazer naquele momento. No entanto, foi a última cerveja. Há mais de um mês que não toca em álcool. Passou de 40 cigarros para 10. E teve mais força do que qualquer outro. Animou-nos. Proibiu-nos de chorar e prosseguiu a vida com a certeza que isto se ia resolver. "É tirar o estômago e pronto", dizia. Mas não é. Não será.

Primeiro, quimioterapia. Depois, logo se vê. Pelo menos isto é o que se espera agora porque, entretanto, neste processo de consulta e admissão no IPO-Porto, já achámos de tudo e mais alguma coisa. Primeiro, pensámos que seria apenas operar. Depois de falar com o médico, fiquei com a certeza que pouco haveria a fazer e operar estava fora de hipótese. Umas quantas segundas opiniões e  a quimioterapia parecia a "solução" ideal para já. E, agora, aguardamos por segunda-feira, pela realização do PET - o exame decisivo que vai averiguar se se realiza Laparascopia para melhor estadiamento do cancro ou se se avança já com a quimioterapia sem pensar em operar sequer. Tudo se vai decidir na próxima semana.

Enquanto isso, preparámo-nos para a luta. A minha mãe já se reergueu do choque, do medo de ficar sozinha na vida, sem o seu grande amor. Ela que passados 36 anos continua apaixonada pelo homem com quem se casou aos 17. Ela que viveu uma vida de percalços. Ela que lutou a vida toda, aprendendo a sorrir em cada momento e a esconder as lágrimas. Ela ficar sem o seu amor é duro demais.

A minha irmã passa ao lado de tudo isto. Na sua inocência de bebé grande. Na sua gargalhada de amor. Na sua ternura. No seu mimo. Passa ao lado porque não tem capacidade para perceber o que se passa. Porque a sua doença não permite. Antes assim, coração de amor quem nem sabe sequer pronunciar dor.

Eu, eu sei lá. Aprendi, muito cedo, a sorrir para a vida, mesmo quando esta só nos quer derrubar. Fiz-me mulher, no verdadeiro sentido da palavra: forte! Mas, ainda assim, tropeço nestas pedras que encontro no caminho para logo me levantar e continuar. Não há tempo para lamurios e tristezas. Por isso, prossigo. Rodeio-me de tudo aquilo que me faz bem. Repenso o futuro e redefino objectivos. Adio o que tiver que adiar. Agora, importa - como sempre importou, mesmo quando a rebeldia não me deixava admitir - a família. Só a família! Mas, também choro. A minha saúde mental assim o exige.

Nenhum comentário:

Postar um comentário